quinta-feira, 3 de julho de 2008

Do tráfico à formação artística, uma questão de oportunidade

Conheci o Afroreggae em julho de 2006 através de um apaixonante bate papo com o Junior, seu criador, na casa do Marcelo Loureiro. Foi incrível, e desde então acompanho a evolução do projeto.

Resumindo o trabalho, é a própria comunidade se organizando e criando alternativas de não ao tráfico, provando que se os jovens tiverem outras possibilidades de obterem as coisas e a vida que almejam, elas preferem uma outra opção. O objetivo é oferecer uma formação cultural e artística para jovens moradores de favelas de modo que eles tenham meios de construir suas cidadanias e com isto poderem escapar do caminho do narcotráfico e do subemprego, transformando-se também em multiplicadores para outros jovens.

Agora, dois anos depois, tive a incrível experiência pela impecável organização do CJE/FIESP (Comitê Jovens Empreendedores) de vivenciar tudo de perto.

Fomos ao Rio de Janeiro num grupo de empresários interessados na melhora do país, inclusão social e ações solidárias multiplicadoras, fazer uma espécie de tour na realidade de parte da pobreza que nosso país enfrenta no dia a dia. Nossas paradas principais foram nos núcleos de atividades do Afroreggae. Começamos pelo Cantagalo, onde o desenvolvimento maior é para formar artistas de circo. Assistimos a lindíssimas apresentações de dança, malabarismo e etc, de onde inclusive, por tamanha dedicação e o sonho de dar certo, sairam alguns alunos para fazer turnê com o Cirque du Soleil.

Ao fim das apresentações desse dia, um emocionante relato. Norton Guimarães, 51 anos vai ao centro do picadeiro e inicia “Me emociono muitas vezes com esses meninos pela vida que eu levava. Há dois anos atrás, meu caminho era bem diferente...”. Entre uma história inicial de ter assistido agressivas brigas dos pais quando pequeno, ter tido pouco carinho e atenção, a outras mais pesadas de ter entrado totalmente na droga, traficado, assaltado bancos, ter sido preso, sido líder de rebeliões em cadeia, feito parte da Falange e depois Comando Vermelho complementa chorando “Meu coração foi mal algumas vezes, mas me emociono. Num Natal, em visita à cadeia perguntei a minha filha qual presente ela gostaria. A resposta foi que eu nunca mais voltasse para lá”. E foi nesse momento que Norton decidiu que sairia da criminalidade. Ao sair em liberdade condicional, a condição de ex-presidiário fechara todas as portas de emprego. Daí veio a fome e o desespero, após um tempo conseguiu uma barraquinha, mas sem dinheiro nem para comprar óleo e batatas para poder vender algo, acabou apelando a Igreja, onde recebeu uma cesta básica depois de tempos sem comer. Em um dia, cruzou Junior. Na época já devia seis meses de aluguel, e escutou “Na semana que vem vá la na firma, pagarei seus aluguéis e te darei emprego” com a condição dele fazer o possível para pagar de volta através de dedicação e transformação. Guimarães nos diz, ainda chorando, e depois de completar um ano e sete meses de Afroreggae “Quantos meninos não estão perdendo a vida a essa hora? Ou se drogando? Eu acredito em vocês, jovens empresários, para ajudar a evitar e melhorar essas condições. Obrigado por estarem aqui”. E para mim a frase mais certeira e forte em meio a esse depoimento foi “Uma caneta na mão de um político corrupto, mata muito mais que qualquer fuzil”. Não se deixem levar apenas pelo resultado final, sem enxergar de onde provém. Atenção a quem elegemos, e após elegermos, que usemos o direito de exigir ações como cidadões. Não podemos ser mero espectadores da corrupção e desilgualde. Chega de hipocrisia!

Nesse mesmo dia a noite, seguimos para um baile funk (Furacão 2000). É triste ver a conduta e letras agressivas. Algo voltado para diversão e distração, acaba induzindo ainda mais à violência.

Dia seguinte. Partimos para o Complexo do Alemão, um dos mais violentos lugares da cidade e considerado um dos maiores bunkers do Comando Vermelho. Logo na entrada da favela, deparamos com a polícia especial em um ambiente protegido por sacos de cimento e metralhadoras apontadas a cada esquina. Ao ingressar na “área de risco”, andamos com a sensação de estar sendo observados a todo instante, e se torna normal assistirmos passar meninos do tráfico carregando fuzis, e até uma bazuca enorme (daquelas vistas apenas em filmes como “Comando para matar”) com os dizeres “CV” (Comando Vermelho) nela cravados, além do comércio de droga rolando solto, tudo alí, bem ao nosso lado. O que nos choca naquele momento, é o dia a dia de milhares da população. E essa cena é logo no começo, imagine nas regiões mais altas, àquelas as quais ninguém de fora consegue (ou deve) chegar. Porém no meio daquilo tudo, conhecemos mais um núcleo do Afroreggae, com mais apresentações especiais, sorrisos, energia maravilhosa, esperança, vitória, sucesso, e o mais importante: oportunidades. E surge um novo relato marcante: de Dongo. Foi gerente geral de duas bocas, perdeu os três irmãos no tráfico, e sobreviveu tendo muitas perdas a combates e tiroteios. Numa gravação de documentário cruzou com Junior e recebeu a oferta de um emprego por R$450. “Aceitei”, diz ele e complementa “Não pelo dinheiro, é claro, fazia muito mais com as drogas, mas pela oportunidade. Nunca na minha vida eu tinha tido a oportunidade de um emprego”. E emocionado finaliza “Estou há quatro anos aqui, e digo por todos, que não trabalhamos no Afroreggae, a gente vive o Afroreggae. É maravilhoso ser um multiplicador de tudo isso”.

Próxima visita: Parada de Lucas. Alí crianças e violinos emocionaram a todos. Assistimos a uma apresentação, onde crianças nos mostraram através da música, como essa distância de mundos é triste e injusta. Lindas, impecáveis, organizadas, concentradas e de postura perfeita, emitiram sons de música clássica com o delicado som dos violinos. Por ser algo que seria tão distante. Uma criança de favela tocar violino, foi de fato emocionante. Todos merecem a chance de acertar na vida.

Para finalizar, tocamos para a favela de Vigário Geral (onde o movimento começou). A Vigário era famosa em todo o Brasil pela violência, é agora reconhecida como um pólo gerador de arte e cultura. Do início ao fim da visita, houveram apresentações artísticas qualificadas. É o máximo ver a alegria de todos em se apresentar e poder mostrar o trabalho. Almoçamos lá mesmo na “Pensão da Chupetinha”. Uma mulher que passa a imagem de forte, durona e mandona, que recebeu o grupo como se fossem filhos, fez um banquete de comida caseira super especial, e se emocionou e chorou ao se despedir de nós agradecendo a visita e carinho. Afinal, quem é que sendo de classe média, deixa seu fim de semana de lazer para visitar à essas comunidades? É uma cena rara a aparição de pessoas interessadas em conhecer melhor e de perto para buscar mudanças, e esse foi o reconhecimento dela para tal.

Passamos também pela apelidada “Faixa de Gaza”, rua que divide Vigário Geral e Parada de Lucas, e foi cenário da divisa entre a atuação do Comando Vermelho (Vigário Geral) e Terceiro Comando (Parada de Lucas). Os moradores das comunidades eram proibidos de circular entre as duas favelas, e até cachorro que cruzasse por alí, era baleado.

E justamente na divisa entre as duas comunidades há uma escola, o que consta ter gerado crianças vítimas da troca de tiros. Hoje com muito da ajuda do trabalho do Afroreggae, é possível o trânsito tranquilo entre as comunidades.

A busca do grupo e especialmente do CJE, é simplesmente diminuir as distâncias, através de sensibilizar e mobilizar empresários e pessoas as quais tem possibilidade de fazer algo por mudanças, multiplicando cada vez mais essa força e união. Temos todos nós uma missão nada fácil e muito grande, mas sim, se todos darem as mãos, temos grandes chances de evoluir o mundo em que vivemos.

Tenho certeza que apesar de todos nós sermos os mesmos, estamos um pouquinho diferente depois desse final de semana. E se torna absolutamente impossível, tapar os olhos para tudo o que vivenciamos.

Na missão de repassar o vivido e atuar em busca de mudanças, parabenizo a iniciativa do CJE, agradeço pela experiência, e ao Afroreggae, que completa agora 15 anos, carrego uma enorme e crescente admiração.

Por Fernanda Suplicy, São Paulo 30 de junho de 2008
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OBS: O Afroreggae conta com o apoio da Petrobrás, Natura, Vale, Banco Real, Tim, e em breve inaugurará um centro cultural 24 horas.

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